Com Washington antagonizando o Texas e tentando sabotar as suas exportações, quem sabe o que o futuro reserva?
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Vimos nos últimos dias a eclosão de tensões políticas nos EUA, centradas no Texas, por causa das divergências entre o governo estadual e o governo federal. Essas tensões giram ao redor da imigração, especialmente a ilegal, que teria alcançado níveis estratosféricos desde a chegada de Joe Biden ao poder.
Resumidamente, os texanos usaram a sua Guarda Nacional para assumir o controle da sua fronteira com o México, após acusações de negligência do dever por parte do governo federal. As acusações de Greg Abbott de que a postura do governo dos EUA representava uma violação do pacto federativo ianque foram apoiadas pela maioria dos governadores estaduais de afiliação republicana e reativaram o espectro da “guerra civil”.
Não sabemos exatamente no quê resultarão essas tensões, tampouco em que medida elas fazem parte de uma disputa que se encaixa no embate eleitoral que se realizará ao final do ano, mas elas já foram suficientes para pôr em questão a integridade e a estabilidade continuada dos EUA para as próximas décadas.
A postura multipolarista em relação a essas tensões tem sido, com muita razoabilidade, de apontar para a incompetência e negligência do atual governo estadunidense em descuidar das próprias fronteiras para patrulhar espaços estrangeiros, provocando uma legítima ira popular – e, em alguns casos, ansiar pela independência do Texas. A postura tem a sua lógica geopolítica: quando a ordem geopolítica possui um hegemon unipolar, tudo que enfraquece este hegemon é bom e tudo que o fortalece é ruim.
No mesmo sentido, na medida em que a relativização das fronteiras nacionais se revela historicamente como parte de uma estratégia de liquefação das soberanias nacionais e de fragmentação do proletariado pela competição com mão-de-obra importada, tal como denunciado já no século XIX por Karl Marx, as preocupações texanas não devem ser desprezadas, mesmo no México e em outras partes da América Ibérica.
E uso o termo “mesmo” por causa das raízes conturbadas do Texas e da perspectiva mexicana, extremamente particular em relação ao tema.
É que o Texas foi um dos primeiros “gostos” da real natureza da Doutrina Monroe (a qual cumpriu 200 anos em 2023) e do seu princípio correlato do Destino Manifesto que os ibero-americanos experimentaram.
No início do século XIX, os EUA estavam já engajados tanto no esforço por alcançar o Oceano Pacífico como no esforço de enfraquecer e expulsar as potências europeias de todo o macrocontinente americano, especialmente os espanhóis.
Boa parte dos esforços, porém, eram “privados”, com o Estado fechando os olhos para iniciativas mercenárias e criminosas autônomas, para colher os seus frutos no longo prazo. Foi o caso das anexações da Flórida e da Louisiana, cuja compra foi precedida por anos de incursões de bandidos, contrabandistas, colonos e filibusteiros, cuja atividade enfraqueceu e desestabilizou a capacidade de Espanha e França administrarem esses territórios.
O mesmo modus operandi foi aplicado no Texas.
Em 1812, sob a justificativa de “ajudar na independência do México”, o tenente Augustus Magee, do Exército dos EUA, invadiu o Texas liderando 130 homens, ainda que sem autorização formal do governo para fazê-lo. Os EUA não o impediram ou puniram, ao contrário, toleraram o seu recrutamento de homens e aquisição de armas para invadir um território estrangeiro com o qual os EUA tinham relações normais.
Apesar do fracasso da pouca efetividade militar dessa expedição, ela lançou as bases práticas para a relativização das fronteiras por parte de Washington, em seu impulso para o oeste, com a discussão sobre os limites da Louisiana, recém-adquirida dos franceses, só sendo resolvida em 1819 no Tratado Adams-Onís e em diálogos subsequentes, pouco antes da independência do México, após novas expedições militares mal fadadas lideradas pelos filibusteiros James Long e James Bowie, contrabandistas e traficantes de escravos, outrora ligados ao Exército dos EUA.
Apesar dos EUA insistirem na reivindicação do Texas, aceitaram “ceder” a região (que nunca havia sido sua) em troca do assentamento de 200 famílias de colonos de origem anglo-saxã, em termos previamente acordados com o vice-reinado espanhol. Para o México, o recebimento de colonos (preferencialmente católicos) vindos dos territórios dos EUA era favorável para a ocupação da terra, já que o Texas era uma das províncias mais desabitadas de todo o seu território.
Os tratados, porém, pareciam apenas um meio dos EUA ganharem tempo. Quando Isidro Barradas lançou uma campanha militar para restaurar o domínio espanhol sobre o México em 1829, o Presidente Andrew Jackson aproveitou os apuros mexicanos para pressionar pela venda do Texas. Diante da recusa, 200 milicianos norte-americanos invadiram o Texas e começaram a ocupar terras ao longo do Rio Bravo, processo precedido por anos de incursões de bandos armados “independentes” vindos dos EUA.
Nessa época, a situação já era desfavorável ao México. Em 1830, o Texas tinha 30 mil colonos estadunidenses, 5 mil escravos negros, 4 mil índios e apenas 3.500 mexicanos. É nessas condições que, ao tentar estabelecer um maior grau de controle sobre as fronteiras mexicanas no Texas, pela construção de alfândegas e postos de controle, eclode a rebelião de colonos anglo-americanos que inicia a “independência do Texas”.
Se a porosidade das fronteiras para contrabandistas, bandoleiros, colonos e milicianos já era grande, a situação de instabilidade leva uma horda desses tipos para o Texas. Os conflitos internos do México impedem a resolução rápida do caos texanos, e o Presidente Andrew Jackson novamente aproveita a oportunidade para pressionar pela compra do Texas e envia o Embaixador Anthony Butler para agitar pela rebelião in loco.
O resto da história é um pouco mais conhecida. Em 1833 o General Santa Anna assume a presidência e suspende a Constituição de 1824. Com uma postura centralista, ele pretende solucionar o problema da instabilidade no Texas. No Texas, enquanto isso, já havia uma elite mexicana interessada em reforçar seus laços com os EUA por causa dos interesses comerciais e agrícolas já desenvolvidos. Essa elite incita os mexicanos texanos a apoiar a rebelião secessionista. Nos EUA, por sua vez, forma-se milícias em vários estados sob a promessa de concessão de terras para aqueles que ajudassem na independência do Texas. Tropas estadunidenses sob o comando de Edmund Gaines e Zachary Taylor já estão na fronteira com o Texas.
Santa Anna tinha consciência dos interesses estadunidenses em anexar o território, bem como de sua agitação por trás dos colonos e avança para pacificar o Texas em 1835. É assim que eclode o conflito, que tem como evento principal a Batalha do Álamo, tão romantizada no cinema, na música e por outros meios.
Alguns meses após o triunfo mexicano no Álamo, porém, as tropas estadunidenses estacionadas entram em território texano sem declaração formal de guerra em apoio à insurreição. Após a derrota mexicana na Batalha de San Jacinto, onde Santa Anna foi capturado, a independência do Texas é formalmente reconhecida.
Os 10 anos seguintes são anos de disputas políticas internas sobre a anexação do Texas, seguindo linhas que já antecedem as contradições da guerra civil, com os sulistas querendo introduzir o Texas nos EUA e os nortistas se opondo. Mas durante todo esse período, continuou o conflito entre México e Texas, bem como o influxo de milicianos privados, filibusteiros e criminosos dos EUA para o Texas e até ao México para atos de sabotagem e rapina; até a intervenção militar estadunidense em 1845, para “proteger o território” após a aprovação da integração do Texas na União em 1844.
Faço esses comentários não para impugnar as reclamações dos texanos em relação à imigração ilegal excessiva e descontrolada, afinal a defesa da soberania de um povo sobre a própria terra é um princípio cuja aplicação deve ser universal, nos termos da lógica do multipolarismo. Até porque estamos no século XXI, não no século XIX, e os anglo-americanos estão no Texas já há 200 anos. Mas porque o contexto histórico é importante para que se consiga construir, para o futuro do Texas (dentro ou fora dos EUA), um caminho que reconheça a natureza “dual” (tanto “anglo” quanto “hispânica”) dessa região.
A economia do Texas e do México, aliás, já estão entrelaçadas há muitos anos, com investimentos produtivos mútuos e relações ganha-ganha. Se o Texas hoje fosse um país, já seria o maior parceiro comercial do México, e vice-versa. E essas relações não são totalmente desiguais, com o México também exportando para o Texas bens industrializados razoavelmente complexos, entre partes de reatores nucleares e carros. Grandes empresas mexicanas também investem no Texas e penetraram seu mercado nos últimos anos, como Bimbo, Gruma, Envases, e outros, tal como empresas texanas também atuam no México.
E com Washington antagonizando o Texas e tentando sabotar as suas exportações, quem sabe o que o futuro reserva?
Talvez esse futuro do Texas possa, de fato, pender para longe de Washington e para mais perto da América Ibérica.